domingo, 12 de dezembro de 2010

Enraizar: Criar raízes, prender-se pela raiz, arraigar




Acredito que esse verbo é o melhor para definir um evento chamado SOLOS FÉRTEIS em Brasília, não apenas pela sugestão do seu próprio nome, mas pela mítica envolvida nas oficinas, demonstrações de trabalhos e nos próprios espetáculos.  Desta vez já imaginava o que poderia encontrar num festival de teatro feito por mulheres, mas como não pode deixar de ser, cada encontro foi surpreendente e os reencontros preciosos.


Assim que fomos para primeira manhã de oficina, Letícia Resck – atriz, equipe de produção e naquele momento cicerone brasiliense para as não-brasilienses – citou um conto de Clarice Lispector em que a mesma dizia ter a impressão de que a cidade de Brasília estava brotando no meio do “nada”. Dias depois durante a apresentação do espetáculo Rosa Cuchillo de Ana Correa (Peru), escuto Lúcia Sander comentar que uma das coisas mais lindas que ela poderia ver era justamente uma índia peruana se apresentando ao lado do Museu Nacional, em plena Praça da República, no meio de tanto concreto. Tudo se correlaciona, fincado, brotando, se expandindo em nossas mentes. Literalmente estávamos envolvidas dos pés à cabeça.

Pois bem, durante cinco dias, tivemos a oportunidade de nos enraizarmos não apenas nos solos férteis do teatro, mas também da convivência e respeito mútuo, além da troca de informações e experiências de mulheres vindas dos quatro cantos do Brasil e de vários lugares do mundo, diferentes idades, formações e informações distintas nos levou a compartilhar deste encontro, que poderia ganhar vários adjetivos como disposição, diversidade, teimosia, curiosidade ou simplesmente coração aberto.

E foi o que mais encontramos, corações abertos da equipe de produção para nos receber com todo carinho possível, com todo amor necessário para se promover um festival deste tamanho e desta importância, e o mínimo que podemos fazer é agradecer e parabenizar Luciana Martuchelli e toda sua equipe por serem só coração com todas nós. Esse mesmo coração aberto foi encontrado também nas participantes como um todo, nos momentos de descontração durante as refeições e translado de um lugar para o outro, os cafés e as conversas, as fotos e filmagens, nas descobertas de afinidades e até nas possíveis parcerias para projetos futuros e possíveis reencontros em outros eventos do Magdalena’s Project.

Em qualquer tamanho do evento e de proposta de discussão, toda oficina sempre é uma troca importante de experiências e impressões, mas acredito que, para todas as participantes assim como acontece comigo, as escolhas sempre caem perfeitamente bem em relação às nossas necessidades do momento, foi o que senti com Natalia Marcet (Argentina) na oficina Meu corpo-meu lar. Para ser, tem que estar. Dada a minha dificuldade particular em trabalhar com corpo e com as lembranças, me senti completamente à vontade justamente pelo cuidado e carinho dela com as pessoas envolvidas naquela troca de experiência, pois se o tema era memória, as gavetas da lembrança não poderiam ser remexidas, reviradas inadvertidamente, elas teriam que ser abertas com todo respeito possível. E depois de assistir seu espetáculo Gordas, fica muito mais claro que somos todas mulheres de carne, osso, conflitos e desejos.

Essa mesma carne, osso, conflitos e desejos também ficaram claros em todos os outros trabalhos apresentados, a vontade de expor, de falar de assuntos muito íntimos e delicados, ou de dividir com o público suas impressões sobre temas polêmicos e políticos. Além, claro, de ver atrizes experientes como Ana Woolf e Julia Varley compartilhando suas técnicas e dificuldades sobre o desenvolvimento de seus trabalhos, nos fazendo ver o quanto é possível também sermos mulheres possíveis, como podemos nos perceber como atrizes, diretoras, dramaturgas, dançarinas e performers, e como o fato de sermos mulheres que trabalham com teatro impactam nossa sociedade.

Consciente ou inconsciente, minha leitura desse ACONTECIMENTO foi um pouco o retorno às nossas origens ancestrais. A relação do feminino com a Terra, com tê maiúsculo mesmo, no sentido de grande-mãe sempre cultuada nos povos antigos, e que, foi se perdendo um pouco com o passar do tempo, me pareceu tão presente e tão forte em todas as nossas atividades, que não sei como explicar, talvez a lua cheia tenha sido responsável por isso. Independente de cor, credo, origem, orientação sexual, postura política e particularidades em geral, reencontrar-se talvez seja a tendência dos nossos projetos tanto profissionais como pessoais. Um olhar voltado para si, mas sem esquecer do outro, um olhar feminino sobre o outro.


Os pés que saltavam eram os mesmos pés que dançavam o frevo, que se enraizavam nas oficinas, que fluíam levemente entre os espaços nas demonstrações, descalços, com meias, em sapatos diferentes ou nos tênis e saltos altos das participantes, esses pés eram os mesmo pés que bateram no solo do teatro da UnB, tremendo o palco e a arquibancada num ritual de comunhão entre histórias reais e a “ilusão” produzida pelo teatro, além, é claro, da celebração de um encontro único de almas afins.